terça-feira, 24 de maio de 2016

Fanfic // Dois Irmãos

A História de Domingas

Por Gabi Motta


Em meados de algum tempo entre a década de 10 ou 20, nascia às margens do rio Jurubaxi uma cunhantã mirrada com espírito de liberdade, andava descalça pelo povoado. Domingas era o seu nome. Seu pai dizia que a mãe nascera em Santa Isabel, que era a mais bela das noites dançantes e das festas do Ajuri, mas quando cresceu, as lembranças da mãe pareciam um espaço em branco. No lugar disso, suas memórias guardavam a imagem do pai, trabalhador de roça e do irmão mais novo.

                Ainda quando nasceu e cambaleava os primeiros passos, gastava as tardes zanzando pelas bordas do rio, colhendo frutos que caíam das árvores sem se despedaçar, brincando com os pássaros – que ela fez questão de aprender os nomes, características e de cuidar quando os achava feridos. Poucos anos depois, nasceu o irmão mais novo, que foi tutorado por ela a também aproveitar essas pequenas e valiosas coisas proporcionadas pela natureza.

                Logo cedo, recebeu a responsabilidade de ajudar as mulheres do vilarejo, ralando mandioca e fazendo farinha, aos poucos deixando calos nas pequenas mãos que trabalhavam minuciosa e atentamente. Além disso, tomava conta do irmão na ajeitada tapera onde vivia, enquanto o pai trabalhava.

                Domingas apreciava e respeitava o rio, as árvores, o vento. Aprendeu desde cedo a respeitar os animais, criando um afeto em especial pelas aves que viviam por ali. Cantarolava rimas desajustadas em Nheengatu, que aos poucos se tornaram belas canções – no futuro, as preferidas de Nael. Colhia frutos das árvores junto dos pássaros, nadava junto dos peixes, explorava o verde junto dos calangos.

                O tempo passava tranquilo, ela gostava de ajudar como podia e era retribuída com ensinamentos, aprendendo danças, histórias e músicas. Aprendeu a trançar fios de palmeira, esculpir em madeira e acabou aperfeiçoando as habilidades em seu tempo livre, criando belas esculturas dos pássaros que tanto admirava, guardando um pedacinho de liberdade em cada uma das pequenas obras de arte.

                Numa tarde de junho, nas vésperas da comemoração de São João, Domingas cuidava do irmão mais novo enquanto o pai fora colher castanha e cortar piaçaba. O pequeno brincava e bagunçava dentro da tapera enquanto a irmã observava o início das festividades, o rugido alto dos tambores e as cunhantãs que já embalavam nas danças e rezas, delicadamente pintadas, cheias de colares nos pescoços esbeltos e penas iridescentes penduradas nas orelhas que carregavam a leveza dos movimentos.

                Subitamente, grunhidos altos de terror tomaram o lugar das vozes e tambores – quando a menina se deu conta do que acontecia, um caititu gritava e se debatia por ajuda enquanto um homem agredia a cabeça do animal escaldado, que assim que apagou teve os pelos arrancados e foi posto num moquém. Domingas correu para junto do irmão mais novo, com o rosto abafado em lágrimas e o corpo tomado pela tremedeira do medo e lá ficou, aguardando o retorno do pai.

                O irmão mais novo ficou inquieto, dançando em maneira de criança com o barulho da festa que vinha de fora, enquanto Domingas era tomada pela preocupação com a demora do pai, que não costumava demorar mais que o necessário em suas saídas. Perguntou a quem passava por ali se alguém o tinha visto, pedia qualquer pequena notícia, mas ninguém sabia onde o homem estava. Horas depois, recebeu a notícia de que o pai fora encontrado morto no piaçabal. A festa que nem começara direito já havia acabado para ela, que se sentia tomada pela invasão de sensações ruins da perda de um dos únicos que restavam de maior importância em sua vida. Agora só restavam ela e o irmão.

                O pai foi enterrado no dia seguinte, num pequeno cemitério localizado na margem oposta do rio. As pequenas lápides eram ajeitadas uma colada na outra, de forma quase ofensiva. Lamentavam-se ali alguns amigos, alguns que trabalhavam junto com ele, algumas mulheres que Domingas ajudava, que resolveram prestar condolências à cunhantã e a enchiam de abraços, tentando confortá-la. Domingas se esvaía em lágrimas e em luto, enquanto o irmão mais novo confundia-se e chorava, perdido na situação.

                Ela repetia, tanto para si mesma quanto para o pequeno: “Vai ficar tudo bem, irmãozinho”, apesar de não saber bem como viveriam dali por diante. Colheu algumas flores de pequenos arbustos dali e depositou-as em volta da pequena lápide do pai junto com as lágrimas que ainda caíam.

                Poucos dias depois, que ainda seguiam com o espírito de luto e medo, um grupo de freiras das missões de Santa Isabel do Rio Negro visitou Domingas e o irmão, agora órfãos. As freiras disseram que a acolheriam num orfanato em Manaus, que teria uma nova chance de vida. Ela não teve muita possibilidade de escolha. Foi levada pelas freiras na manhã seguinte, quase sem poder se despedir das mulheres do vilarejo, do irmão, do rio e dos pássaros. “Esse é o meu lugar”, dizia.

                Contra sua vontade, Domingas foi levada para Manaus, distanciada de sua origem e não conseguia conter o desespero em pensar que nunca mais veria o irmão. As lágrimas escorriam incessantemente, simultâneas ao turbilhão exasperado de emoções com o qual ela não sabia lidar. Várias questões sem resposta surgiam, preocupava-se com o irmão deixado para trás, tinha medo do que viria, não conseguia ou sequer podia escapar.

                Seu passado foi excluído, apagado sem escolha. Uma porta para um futuro incerto, desesperador e solitário foi aberta. Domingas foi deixada no orfanato de Manaus. A índia foi alfabetizada, batizada e obrigada a aprender rezas e regras de um lugar que não fazia parte dela. O resto, você já sabe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário